A grande glória do jornalismo | Comportamento


Desde muito pequena, o Fantástico foi um programa que me chamava muita atenção porque tinha aquele balé na abertura. Os movimentos de dança contemporânea em cenários sci-fi, cheio de cores e formas geométricas, me deixavam hipnotizada. E olha, eu tinha uns 4, 5 anos. Mas minha relação com o Show da Vida ficou ainda mais intensa quando percebi a presença de Glória Maria, já com uns 10, 11 anos.

Nos bastidores da TV Globo, Glória Maria com o cabelo que ficou na minha memória afetiva por muitos anos — Foto: Divulgação TV Globo

Na minha memória, o meu encantamento, àquela altura, não chegava à constatação de que ela era uma mulher negra. O que me fascinava era o perfil desbravador, a naturalidade com que ela falava, os lugares pelos quais viajava, as pessoas às quais tinha acesso. E como a logística de assistir televisão era diferente, Glória era o meu compromisso de domingo à noite. Voltava da casa do meu bisavô direto para a frente da TV, sem escalas.

E meu olhar atento foi crescendo com a força e a relevância daquela repórter, sempre a escolhida para tratar dos assuntos mais importantes da semana. Como ela poderia estar em uma geleira na Noruega e, de repente, dançando com o Mickey, na Disney? Ninguém fazia isso. Nem homem, nem mulher, nem branco, nem preto. Só a Glória.

Mas aos poucos eu fui entendendo seus recortes e me aproximando dela. Lembro muito de perceber que ela usava o mesmo tipo de cabelo da minha mãe, um black power redondinho, que puxava uma franjinha curta sobre a testa. Foi na época que minha irmã do meio nasceu e minha mãe começou a usar o cabelo natural, mais curto, e eu amava ver esse visual na TV. Isso sem falar que ela tinha diastema, como eu. Os dentes da frente separados é um traço étnico, e desisti de corrigir quando descobri isso e comecei a ver outras pessoas com essa característica.

Também comecei a perceber a presença dela em outros lugares, principalmente no Jornal Nacional, onde ela entrava bastante ao vivo. E eu sempre, sempre, ficava nervosa. Como se fosse uma tia minha ali, vulnerável a qualquer intempérie que uma matéria transmitida em tempo real possa sofrer. E junto com esse nervoso também veio o entendimento de que o que ela fazia não era entretenimento, era notícia. Ela também cobria guerra, fome, escândalos políticos. Como poderia ser tão gigante?

Então sim, ela é o nome e o rosto da minha decisão pelo jornalismo. Existe uma tradição (bem pioneira, e eu morro de orgulho!) em estudar Medicina na minha família. E até os 15 anos eu tinha certeza de que seria pediatra e trabalharia no consultório da minha tia Dada, em Porto Alegre. Mas a Glória estava guardada em algum lugar dentro de mim – e foi despertada por uma paixão arrebatadora pela necessidade de me comunicar, de descobrir, de uma curiosidade de saber como é o mundo que me atravessou profundamente no final da minha adolescência. Veio junto daquele início de maturidade e um desejo de autonomia que nascia em mim e ajudou a me encorajar a seguir pelo caminho que me fazia brilhar os olhos.

Glória Maria na Noruega — Foto: Divulgação TV Globo

Ao optar por jornalismo, em 1993, não tinha nenhuma garantia de que daria certo, ninguém pra me indicar um trabalho, sugerir meu nome, me oferecer um estágio. Nem na faculdade eu tinha pares. Nenhuma mulher negra parecia topar aquela empreitada tão improvável. Mas tudo bem porque, lá longe, brilhando mais do que qualquer outra, tinha a Glória.

Fiquei muito tempo observando e aplaudindo seu trabalho sem enxergar nenhum traço de relação com questões raciais. Com o passar do tempo, a preocupação das pessoas com a convergência entre aparência e idade dela era muito maior – e esse era o tema escolhido quando se tratava da vida pessoal da jornalista. ‘Toma tantas pílulas por dia, come ninho de passarinho para cuidar da pele’ era o mais fundo que se conseguia chegar sobre sua intimidade. Isso sem falar da roleta de apostas sobre em qual ano ela teria nascido.

Na cronologia que faço aqui, percebi que foi depois do período sabático entre 2007 e 2009, em que morou na Índia e na Nigéria, e depois de se tornar mãe de Laura e Maria, é que consegui identificar melhor os contornos daquela mulher que me encantou desde sempre e que foi a única projeção possível do que eu gostaria de ser. Provavelmente ela começou a falar mais sobre si. Também passou a sair mais dos bastidores e ser o alvo de entrevistas. E só assim fiquei sabendo que ela ouviu o presidente Figueiredo, lá no inicinho dos anos 1980, pedir para “não deixarem aquela neguinha da Globo chegar perto de mim”. Ela tinha 30 anos quando isso aconteceu. E deve ter entendido que precisaria administrar esse tipo de situação durante a carreira inteira, porque não havia horizonte de uma mudança positiva.

Glória Maria assumiu a bancada do Fantástico em 1998, mesmo ano da minha formatura em Jornalismo — Foto: Divulgação TV Globo

E isso faz tanto sentido. Dá para entender melhor essa balança que estipulou para equilibrar a liberdade para viver suas escolhas, o compromisso de fazer seu trabalho de maneira irretocável – prerrogativa indispensável quando se é único em algum lugar – e manter as emoções sob controle quando se é desafiado o tempo todo.

Eu me senti sozinha no espaço que ocupo durante muito tempo. Muito mesmo. Depois comecei a me reconhecer em mais pessoas, cheia de admiração, mas com muita distância. E desde o ano passado eu fui acolhida por um grupo de 50 jornalistas negras que se reúnem para alinhar propósitos, ouvir, dividir, dar a mão, o ombro, o colo. Existe uma potência concentrada ali nesta iniciativa pensada pela Cris Guterres, da TV Cultura, e da Letícia Vidica, da CNN, que eu acredito que não tinha vivido ainda. Mais do que encontrar esse lugar de conforto, essa turma é fundamental para me lembrar que a mesma faísca que brilhou pra mim, há 30 anos, ainda está acesa. E com uma potência tão espetacular que eu tenho certeza que vai ajudar a mudar o mundo. Qual o nome do grupo? Herdeiras de Glória Maria. <3



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